Alunas da Faculdade de Artes Visuais promovem intervenção artística sobre assédio
Cartazes do projeto Meu Colega de Sala denunciam assédio por meio de frases escutadas pelas garotas
Por Cecília Fernandes
O projeto Meu Colega de Sala surgiu no mês de maio como uma iniciativa interna das estudantes de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás (UFG). Ele teve início a partir de um grupo de WhatsApp criado para promover intervenções artísticas relacionadas a questões feministas. Durante as conversas surgiram denúncias de casos de assédio entre as participantes e a necessidade de reagir diante desses acontecimentos. Dentro do projeto foram confeccionados pôsteres com frases machistas ou de teor sexual que as alunas relataram ter escutado dos colegas de sala. Estes cartazes foram fixados nos corredores do prédio da Faculdade de Artes Visuais (FAV).
A estudante do terceiro período de licenciatura em Artes Visuais e organizadora do projeto, Gabriela Chaves, explicou que a situação que deu início a essa intervenção foi um caso de assédio generalizado entre as estudantes. Uma das meninas, cuja identidade é protegida pela própria organização da iniciativa, denunciou que um colega de sala havia mandado fotos íntimas para ela sem permissão e outras afirmaram ter passado por situações similares com o mesmo estudante. Essas denúncias despertaram a necessidade de utilizar da arte para intervir em casos de assédio, atraindo outros relatos de situações que ocorriam com as outras discentes.
Desconforto e questionamento
Foto: Beatriz de Oliveira
Intervenção com cartazes feita em m corredor da FAV espôs atitudes machistas dos colegas e situações de assédio
“Quando a gente fez a intervenção, deu muito o que falar na faculdade. As meninas que passavam pelo corredor paravam para ler e se identificaram com as frases, porque já haviam ouvido algo semelhante de um colega de sala” afirmou Gabriela quanto aos resultados que essa intervenção criou na FAV. Essa identificação com o projeto permitiu não somente o conhecimento das denúncias, como também provocou um senso de união nas estudantes envolvidas, criando uma rede de sororidade e confiança para lutar e reagir a esses acontecimentos.
Quanto aos rapazes, Gabriela afirma ter percebido um choque, como quem não esperava a atitude da intervenção e também como quem se identificou como autor de algumas frases. Apesar de haver falas generalizadas, que qualquer garoto possa ter dito, havia frases específicas em relação ao envio de fotos íntimas sem permissão, à invasão do espaço pessoal das estudantes dentro e fora de sala. “Enquanto alguns dos rapazes refletiram e buscaram conversar com as meninas para se desculpar pelo que havia acontecido, outros foram conversar com alguns ingressantes para desvalorizar o movimento, dizendo que a situação não havia sido daquela forma, distorcendo a história e dizendo que se sentiram ofendidos”, explica a estudante.
O projeto irá alcançar níveis institucionais superiores às ações das estudantes, por meio de uma carta formal direcionada ao Diretor da FAV a respeito dos casos de assédio. Apesar das denúncias, os casos continuaram acontecendo e se aprofundaram com ofensas às estudantes participantes da intervenção Meu Colega de Sala. A paralisação das aulas em decorrência da greve dos caminhoneiros acabou estendendo o tempo de produção e entrega do documento, cujo principal objetivo é sair do campo das denúncias para o campo da ação, com punições administrativas e legais aos agressores e com prevenção de possíveis casos.
Instrumento de mudança
O projeto Meu Colega de Sala dialoga com outras iniciativas feministas ocorrendo no Campus Samambaia. Entre elas, a organização do Coletivo Feminista de Arquitetura, criada pelas estudantes do curso após conversa com o professor Bráulio Vinícius. Em diálogo com as ingressantes, o professor abordou o fato de que mais da metade do corpo estudantil da Faculdade de Artes Visuais, e do próprio curso de Arquitetura, é composto por mulheres. Esse dado acompanhou a constatação de que, mesmo com essa quantidade de alunas, a faculdade não possui iniciativas feministas fixas e permanentes.
As estudantes do primeiro período do curso, Malu Carvalho e Anna Júlia Rodrigues, começaram a debater sobre criar um Coletivo Feminista após conhecimento dos números. Ao expandir a ideia até o Centro Acadêmico de Arquitetura com intenção de saber como proceder, receberam o apoio das participantes do CA do sétimo período, Bianca Mazetti e Júlia França, e deram início às primeiras reuniões de organização. “Estamos fixadas como Coletivo, a ideia existe, as iniciativas existem, mas ainda estamos no processo de errar e aprender para conseguir montar algo fixo. A iniciativa e a vontade de fazer existem”, explicou Anna Júlia.
Foto: Beatriz de Oliveira
As criadoras do Coletivo de Feministas de Arquitetura
Local de fala
A vontade de iniciar o Coletivo surgiu com maior força após a palestra do Dia do Estudante de Arquitetura (DEA) na PUC de Goiânia. O evento contou com a presença de Julia Mazzuti Bastian Solé, estudante de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília e fundadora do Coletivo Arquitetas Invisíveis, iniciativa inaugurada em 2014 com a intenção de “promover igualdade de gênero dentro do âmbito da arquitetura e urbanismo, por meio do reconhecimento e divulgação da vida e obra de arquitetas desprestigiadas pela história”, como afirmam no portal do projeto.
Após ouvi-la palestrar sobre a pouca presença de mulheres no mercado de trabalho, principalmente na àrea de projeto urbano, a estudante Malu Carvalho teve sua visão a respeito da realidade feminina no ramo ampliada. A partir daí percebeu a necessidade de criar um projeto semelhante dentro da UFG, um espaço para discussões sobre o mercado de trabalho de Arquitetura e Urbanismo, de estudo das criações de mulheres nessa área, além de um espaço para se debater e estudar as correntes e ondas do feminismo enquanto movimento histórico.
Durante a conversa relacionada à palestra, as estudantes revelaram que a dificuldade da mulher ser reconhecida na área de projetos urbanos ocorre porque elas tendem a se atentar a todos os detalhes possíveis, cada problema que possa aparecer. “Acaba que a matéria de projeto urbano dentro da faculdade vira um massacre, porque a gente está lá querendo visualizar detalhes de, por exemplo, o piso de um banheiro que pode não ser aderente o suficiente e as pessoas podem escorregar. A gente pensa nas idosas e nas crianças que vão acessar aquele espaço, enquanto que os professores e os alunos não estão nem aí para essas questões, focando mais na praticidade e na estética do ambiente. É muito difícil e a maioria das mulheres acaba desistindo porque acreditam não haver espaço de fala ou participação para elas”, explica Malu.
Nesse sentido, elas reconhecem a importância de projetos feministas, porque essas situações ocorrem em outras áreas de estudo e trabalho. Quando perguntada sobre a visão pessoal a respeito da movimentação feminista ocorrendo no campus, Malu respondeu prontamente que “Essa união é como se fosse a coisa mais importante no momento, estamos vivendo um momento político caótico em que querem massacrar a gente [mulheres], mas percebo que existem pessoas pensando diferente. Quando cheguei na faculdade vi que havia pessoas querendo fazer e exercer suas capacidades de formas diferentes, conheci mulheres querendo fazer uma Arquitetura diferente, um Jornalismo novo, no Direito, nas Engenharias e em outras áreas.”
Força nos braços
No evento da Praia da FAV, as estudantes criaram uma comissão contra assédio durante a festa, se identificando por uma faixa no braço. A intenção dessa iniciativa tratou do policiamento, além da promoção de auxílio a qualquer pessoa que tenha sido subjugada por força ou tenha seu espaço invadido por manifestações de assédio sexual. Essa presença era organizada para ocorrer a partir de uma união de garotas com a vítima, promovendo auxílio emocional e físico, bem como discutindo formas de resolver a situação.
A organização das estudantes em festas universitárias, como as conhecidas calouradas do começo do período e choppadas de diferentes dimensões, tem se popularizado e ganhado espaço como medida preventiva e de auxílio. No INTERUFG desse ano, havia um grupo de mulheres organizadas em uma tenda de apoio para casos de assédio, além disso, algumas voluntárias garantiram a presença nos jogos e festas noturnas com um bracelete cor de rosa e crachás específicos para identificação. A principal intenção do grupo era proteger outras meninas, ajudando em qualquer possível caso de assédio e criar segurança às mulheres no evento.
Essa organização é resultado da campanha Inter das Minas, criada por mulheres e para mulheres para acolher esse grupo em eventos universitários, onde acontecem vários casos de assédio que muitas vezes não são denunciados e permanecem ocorrendo. “É muito gratificante, primeiro ver várias meninas se unindo, se voluntariando só para ajudar outras meninas, para fazer de certa forma um abraço coletivo para que outras se sintam amparadas. Ver a campanha funcionando, partindo dessa união, foi um momento muito especial”, afirma Taíssa Gracik, estudante de Jornalismo da UFG e voluntária do Inter das Minas em 2018.
#PrimeiroAssédio
O projeto Meu Colega de Sala se assemelha muito ao projeto Primeiro Assédio que ocorreu em 2015. A ONG Feminista ThinkOlga lançou na época a campanha no twitter pela hashtag #PrimeiroAssédio, em resposta aos comentários de cunho sexual publicados na internet a respeito da participante Valentina, 12 anos, do programa MasterChef Júnior. A intenção da campanha era incentivar as mulheres a compartilhar quando ocorreu o primeiro assédio em suas vidas, para mostrar a gravidade da chamada “cultura do estupro” no Brasil e expor que o que é rotulado como brincadeira por alguns alcança, socialmente, questões muito mais profundas.
Com mais de 100 mil seguidores no Twitter, a campanha alcançou o marco de 82 mil tweets com o uso da hashtag e relatos, revelando a partir do estudo dos dados realizado pela ONG que a idade média do primeiro assédio é de 9,7 anos. Na análise dos resultados da campanha, a Organização apresenta o dado liberado pela BBC Brasil de que em grande parte dos crimes, 65% são cometidos por conhecidos, desde tios até padrastos ou amigos de confiança.
Em um país em que o Sistema Único de Saúde recebe duas mulheres a cada hora por ser vítima de abuso, de acordo com o levantamento do Ministério da Saúde de 2012, medidas de prevenção e denúncia de casos de assédio são fundamentais quando se pensa na segurança e nos direitos básicos da mulher. A presença feminista no Brasil se torna uma necessidade a partir da análise da situação dessa parcela da sociedade.
Resolução Consuni nº 12/2017
O Conselho Universitário (Consuni) da Universidade Federal de Goiás (UFG) aprovou no dia 19 de maio de 2017 a Resolução que institui normas e procedimento a serem adotados pela instituição em casos de assédio moral, sexual e qualquer forma de preconceito. Essa medida, além de estabelecer definições e características que diferenciam os tipos de assédio, promove orientações de como a instituição deve proceder com os casos.
Dentro do documento da Resolução, fica declarado a criação da Comissão Permanente de Acompanhamento de Denúncias e Processos Administrativos relacionados a questões de assédio moral, sexual e preconceitos, também para propor campanhas educativas e ações preventivas. Em termos de Brasil, a UFG é pioneira nas práticas de combate ao assédio e usada como referência para outras Universidades que buscam lutar contra essa violência.
Para Michelle Franco, vice-diretora da faculdade de Ciências Sociais, professora da área de Sociologia e do programa de pós-graduação interdisciplinar em Direitos Humanos, a Resolução é um choque necessário. “É igual mais ou menos a Lei Seca para minha geração. A minha geração bebia e dirigia, não havia discussão sobre os riscos, no primeiro momento que surgiu a Lei, houve um estranhamento enorme porque antes não existia algo concreto impedindo. Com a Resolução há sim um estranhamento, mas um estranhamento salutar, em que ocorre um questionamento e uma reflexão em relação às próprias ações com terceiros”, afirma.
A função pedagógica sustenta a importância dessa Resolução, na visão da vice-diretora e estudiosa da área de Violência e Criminalidade Violenta: “Por que o nosso país tolera taxas epidêmicas de feminicídio e homicídio, sobretudo em relação à juventude negra? Porque a gente não discute, a gente não aprende isso. Se em todos os ambientes, desde a criança deixada na creche, fosse sendo pedagogicamente mostrado que ser hétero e homem não é o topo da cadeia alimentar, que você tem que valorizar e respeitar todos os outros tipos de comportamento, se fosse assumido esse caráter pedagógico, nós não teríamos esse quadro de violência”, questiona.
#NãoÉNão
Foto: Beatriz de Oliveira
Campanha de conscientização pelo fim do assédio
No primeiro período de 2018 a UFG lançou oficialmente a campanha “#NãoÉNão Entendeu? Assédio sexual é crime” durante a Semana dos Ingressantes. Uma palestra ocorreu no dia 14 de março no Pátio das Humanidades para apresentar a proposta da campanha e contou com as falas da professora Michelle Franco a respeito da função pedagógica da iniciativa. A vice-reitora Sandramara Matias falou a respeito da finalidade e intenções do projeto, que faz parte das iniciativas institucionais para tornar a Universidade um ambiente seguro e acolhedor a todos os estudantes.
A campanha é resultado do trabalho da Comissão constituída por ordem da Resolução, formada por componentes de diferentes corpos acadêmicos, desde membros do gabinete da Reitoria até integrantes do Diretório Central Estudantil (DCE). A divulgação e popularização da iniciativa ocorre por meio da identidade visual criada pela Secretaria Especial de Comunicação Social da UFG (Secom), distribuída por meio da cartilha virtual e física abordando o que é assédio, como proceder diante de casos de assédio, onde denunciar e as demais informações básicas presentes no documento da Resolução. Além disso, a propagação de cartazes pelos espaços físicos do Campus, assim como a utilização de camisetas, canecas e bottons reforça a importância do projeto e a presença deste no espaço da Universidade.
“Eu entendo o #NãoÉNão como um sentimento, um movimento de mulheres que tiveram a coragem não só de se reconhecer, mas de se afirmar e de se legitimar. Embora elas estejam situadas numa relação desigual de poder, elas estão reivindicando seus próprios direitos em relação às situações de assédio. É um movimento de coragem por estarmos lidando com as nossas dores e também de estar afirmando com ênfase que não é não, defendendo nosso espaço de fala” explica Michelle.
A denúncia
A Ouvidoria surge neste contexto como local de fala e espaço de ocupação das mulheres dentro da Universidade. Com maioria feminina, a Ouvidoria é o órgão responsável pelo recebimento de denúncias relacionadas a assédio sexual, sendo garantido a preservação da identidade da vítima dentro do protocolo de formalização da denúncia. As formas de contato com o órgão estão presentes na cartilha da campanha e abrangem tanto as mídias digitais quanto as analógicas e presenciais.
Segundo o Relatório das Atividades da Ouvidoria, no ano de 2017 foram registradas 742 demandas, uma média de cerca de 62 demandas por mês. O número total de demandas é cerca de 18% maior do que no ano de 2016. Esse dado pode parecer preocupante, entretanto, devido à intensa propaganda da Campanha e o desenvolvimento dos meios de acesso à Ouvidoria a partir da publicação da Resolução desse mesmo ano, a impressão principal que surge dessas informações é que o aumento no número de denúncias decorre da conscientização do corpo acadêmico.
Para acessar a cartilha da campanha #NãoÉNão Entendeu? Assédio sexual é crime e entender mais sobre o projeto, assim como as vias de denúncias presentes dentro da Universidade Federal de Goiás, clique aqui.