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Tiago Abreu

Entre memórias e glórias, família no interior baiano mantém raízes

É noite de sábado e uma festa de casamento entre amigos acontece no interior. Políticos e pessoas de diferentes comunidades, localizadas na zona rural da cidade baiana de Paratinga, compartilham o mesmo espaço. É nesta mistura de relações que se veem diferentes gerações de uma só família – pais, filhos, netos e até mesmo bisnetos – participando daquele evento.

 

No entanto, uma das mães de vários que ali festejavam estava exercendo funções domésticas em outro lugar. Balbina Brito, 78, viúva e mãe de doze filhos, preferiu permanecer em sua residência cuidando de dois dos seus vinte e um netos. Ela mora no Boqueirão, um dos povoados rurais de Paratinga, município localizado a 710 km de Salvador.

 

A região do Boqueirão, assim como grande parte do município, é rica em paisagens naturais. Em plena caatinga e sujeita à seca e escassez de recursos humanos característica do sertão nordestino, o local é rodeado de serras e terra fértil. É neste lugar que Balbina viveu seis décadas de sua vida e construiu parte de sua história, rodeada de dificuldades e conquistas.

Foto: Tiago Abreu

Sobrevivência

 

“Me mudei para cá em 1955”, conta Balbina, sentada em um sofá na varanda. Naquele ano, a jovem que morava num povoado chamado Pedra Comprida, casou-se com Regino Pereira de Brito, com quem compartilhou o último sobrenome e o lar. Ele faleceu em 2000, aos 66 anos, vítima de um acidente doméstico. Dezesseis anos depois, ela guarda objetos e histórias do marido e afirma que, ainda adolescente, recebeu um conselho de seu tio que “casamento é só o primeiro”.

 

Em 1955, o Boqueirão ainda era propriedade de Gabriel Brito, pai de Regino. Ele era proprietário das terras até sua morte. Nela, criou sua família e todos os descendentes que viveram lá. Ao passar dos anos, estradas e vias precárias foram criadas. O acesso a direitos básicos como saneamento, saúde e educação era ineficiente. A energia elétrica chegou lá apenas nos anos recentes. Mesmo assim, todos seus descendentes permaneceram ali.

 

As condições de parto para mulheres como Balbina, então, eram extremamente complicadas. Geralmente, o processo era realizado por parteiras, sem a possibilidade de conduzir os procedimentos cirúrgicos com equipamentos especializados e limpos. Mesmo assim, a maioria dos seus filhos sobreviveu com saúde. Entre eles estão duas gestações de gêmeos. O caçula nasceu em 1985, quando ela tinha quarenta e oito anos de idade.

Balbina, mãe, avó e bisavó, é raiz de várias gerações da família Brito em Paratinga

Os primeiros gêmeos receberam, como homenagem, o nome dos pais de Regino. Gabriel e Cirila nasceram em 1966. Balbina lembra-se de que, quando estava grávida, ainda trabalhava ativamente, tendo que buscar água, em pleno sertão, para utilizar em sua casa. O local mais próximo ficava a um quilômetro e meio do Boqueirão. A falta de um trajeto pelas serras dificultava a passagem de pessoas e veículos.

 

Hoje, a maioria dos irmãos de Regino faleceu. Ainda vivem dois irmãos e uma irmã. Um deles é casado com Rosinha, irmã de Balbina. Casamentos entre parentes, em uma região tão isolada, era comum. Um dos filhos de Balbina, Nelson Brito, é casado com uma prima. Várias das terras pertencentes aos seus pais estão nas mãos dele, único dos doze que permaneceu na zona rural e, junto à mãe, cuida dela.

 

No entanto, naquele final de semana, filhos e filhas foram para o interior participar daquele casamento de amigos e, consequentemente, visitar a matriarca. Ela, por si, evita viagens. “Não consigo mais viajar. Fico enjoada, passo mal e, por isso, prefiro ficar por aqui. Estou no fim da idade”, justifica Balbina, se referindo à dificuldade de sair da cidade para ver seus filhos.

 

Na madrugada de sábado para domingo, todos os que estiveram na festa de casamento retornaram ao Boqueirão e hospedaram-se na casa de Balbina. Durante o dia ela, centro das atenções, revisitava fotos e contava histórias. Um churrasco, abaixo do pé de oiti plantado por Regino, alimentava a todos que, por anos, estabelecem relações de sangue.

 

Decadência

 

Os antigos, como Regino e Balbina, sonhavam com uma estrada que subisse a serra do Boqueirão. Hoje, a via existe. Nelson, 44, descendente, tem um senso de responsabilidade com relação ao legado dos pais. Ele se vê extremamente preocupado com o aumento do tráfego na região e os perigos iminentes e visíveis trazidos pelos motoristas.

 

O principal destes perigos, para Nelson, é o lixo. Em certos pontos da serra são vistos entulhos jogados entre as árvores. São sacolas, latas de cerveja, garrafas vazias que englobam produtos recicláveis, orgânicos e inorgânicos. “São pessoas que vem de Macaúbas e acham que aqui não tem regras só porque é uma roça. Estão destruindo meu Boqueirão”, lamentou. Para ele, o fundamental era sinalização e avisos, em placas.

 

Balbina queixa-se constantemente de motociclistas que, em alta velocidade, matam galinhas dos moradores ao trafegarem pela estrada. As suas, por precaução, estão cercadas. Mas as de seu filho Nelson, soltas, correm perigo. Por isso, em todas as manhãs, ela checa. “Ele deveria fazer uma cerca. Vão matar todas as suas galinhas”, Balbina afirmou.

 

Mesmo em pontos urbanamente mais movimentados, a cidade não dispõe de muita sinalização e fiscalizações. Grande parte destes motoristas, especialmente motociclistas, seja na zona rural ou urbana, não possui carteira de habilitação. O resultado, segundo Nelson, é um desastre. “Eles não sabem quase nada sobre dirigir, nem dar uma seta. Brincam com a sorte e com a falta de fiscalização”.

 

Todavia, Nelson afirma que da prefeitura de Paratinga não há o que esperar. Muitas das iniciativas promovidas na região partem dos próprios moradores. Em suas palavras, a implantação de lâmpadas nos postes, com a chegada de energia elétrica, era para ter sido feita. Em contrapartida, o recurso não chega e a taxa de iluminação pública, no valor de dez reais, é cobrada para os moradores.

Guedes de Brito

As primeiras histórias de Paratinga remetem ao século XVII, quando Antônio Guedes de Brito estabeleceu-se como pecuarista e dominou toda a região. A antiga vila de Santo Antônio do Urubu de Cima era a sede e aglomerava uma série de fazendas e arraiais. Os Guedes de Brito, entre outras famílias tradicionais, deixaram descendentes e, com as secas e fome ocorridas no século XIX, relações de dominação portuguesa sobre índios e negros lentamente se dissolveram.

Hoje, restam alguns detalhes do passado. Mas, segundo Gabriel, 50, um dos filhos gêmeos de Balbina, e cabeleireiro no perímetro urbano da cidade, a configuração local não abrange grandes propriedades. “Não existem mais latifúndios de mil hectares por aqui, diferentemente de outras cidades como Luís Eduardo Magalhães”.

Não é somente a zona rural que carece de recursos. No perímetro urbano, grande parte das ruas de Paratinga não conta com saneamento básico e sequer asfalto. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do município, no valor de 0,59, é baixo. Apesar da falta de provisões e da distância entre os recursos públicos e o povo, políticos são frequentemente vistos em eventos sociais da população.

Seus números, em pleno ano de eleição, estão estampados em casas e construções. Na falta de condições de emprego, parte da população vota em candidatos específicos por promessas de contratação no setor público. Enquanto isso, a construção de uma quadra coberta com vestiário na comunidade de Santo Onofre, na zona rural, em parceria com o Governo Federal, era para estar pronta em setembro de 2015. Hoje, a obra está abandonada.

 

A cidade está completamente distante de seu auge. Se, no passado, foi o centro político de toda uma região no oeste baiano e na divisa com Minas Gerais, tem sofrido a redução de seu território e poder econômico desde o século XIX. Municípios importantes do estado e emancipados, como Bom Jesus da Lapa, hoje são maiores e mais atrativos que o velho Santo Antônio do Urubu de Cima, mais tarde batizado como Rio Branco, hoje chamado de Paratinga, palavra em tupi.

Foto: Tiago Abreu

Foto: Tiago Abreu

Movimentos

 

Em contrapartida ao destaque que Parantiga recebia na antiguidade por abrigar um grande cais por onde passavam pessoas de vários estados do país, o Rio São Francisco, que corta o município, também vive seus dias de agonia e lentidão. Cada vez mais seco, os leitos do protagonista que garantiu a sobrevivência de sertanejos como Balbina por séculos, hoje é coadjuvante e clama socorro.

No porto da cidade, é possível ver a decadência e pouca movimentação das águas. Areia, terra e líquido relativamente sujo se misturam a um cenário quente e seco em pleno inverno. Curiosamente, num espaço de encontro da população com as águas, há um orelhão quebrado, cujo desatino revela as mudanças tecnológicas e o consequente abandono destes recursos disponibilizados à população.

Mas, em 2016, os valores ditados aos jovens paratinguenses são outros. O slogan recente do município, “cidade da música”, parece corroborar ações que atraem grande parte da população. Em comemoração aos 118 anos de Paratinga, a prefeitura da cidade promoveu uma série de apresentações com entrada franca – a atração principal foi a dupla de sertanejo universitário Thaeme & Thiago. Os shows, juntamente com os processos políticos de eleição, movimentam o município.

 

O aniversário de Paratinga, no dia 25 de junho, é estrategicamente prolongado com as comemorações da Festa Junina. Os pontos centrais da cidade, como a Praça 2 de Julho, estão decoradas com bandeirolas. No Carnaval, ocorre o mesmo processo e, durante dias, os foliões aproveitam para ouvir músicas, namorar e interagir socialmente em locais públicos.

 

Embora grande parte dos adolescentes ainda esteja interessada nas festas e atrações que ocorrem no município, Nelson Brito enxerga uma mudança crescente entre eles. Ele afirma, por exemplo, que praticamente não vê mais jovens em um dos campos de futebol na zona urbana do município. “Eles só querem saber de videogame e internet. Talvez seja por isso que atualmente temos uma seleção tão ruim”.

 

A mudança nos costumes que ele enxerga se vê exatamente no seu circuito familiar. Um dos netos de Balbina e seu sobrinho, Pedro Henrique, mesmo aos doze anos de idade, quer ser um youtuber de jogos. Os filhos de Nelson, Micael, 16, e Poliana, 14, de tempos em tempos, vão à cidade para acessar redes sociais na casa de parentes e amigos. Enquanto conexões de internet sem fio não chegam ao Boqueirão, pela dificuldade geográfica, eles se conectam como podem.

 

Mas não são apenas pessoas de idade juvenil que mostram interesse pelo meio cibernético. O caçula de Balbina, Alonsio, 31, destaca o WhatsApp como uma ferramenta que, segundo ele, está facilitando a troca de informações em nível pessoal e profissional. “Se eu precisar enviar informações sobre um documento para alguém, é só tirar uma foto e enviar. Se eu encontrar algo curioso, em segundos outras pessoas veem e vira um sucesso na internet”.

Quilombo

Um dos bairros da cidade, chamado de Tomba, é formado majoritariamente por negros, descendentes de quilombolas. As construções antigas e as ruas de pedra indicam a longevidade do espaço. Ali, está localizada a Tomba FM, uma rádio comunitária que, com incentivos financeiros provenientes da prefeitura do município, tem a intenção de promover eventos e atividades culturais, com música, dança e produções audiovisuais.

Memórias e conquista

 

Com base nas lembranças de um passado difícil que corre o risco de ser negligenciado pelos mais jovens, Sérgio Brito, 24, sobrinho de Balbina, produziu um documentário sobre o passado dos antigos naquela região. Ele gravou depoimentos de seus pais, tios e amigos ainda vivos e que passaram, ao longo do século XX, uma trajetória de invisibilidade perante direitos básicos, como educação e saúde, na intenção de promover, aos jovens, uma consciência de valorização pelo o que têm hoje.

 

O conteúdo gravado de forma artesanal, com o celular, revela histórias de dor, sofrimento e dificuldades. Mas, ao mesmo tempo, reitera a alegria dos mais velhos com os recursos da “modernidade” e a esperança de um futuro melhor para seus descendentes. “Queria mostrar aos mais novos como era a vida por aqui. Tem coisas que se eu simplesmente disser hoje a eles, não acreditam”, conta Sérgio.

 

A mãe de Sérgio e irmã de Balbina, Rosinha dos Santos, 63, afirma que na sua juventude, para ir da casa dos pais à sua residência, necessitava andar a pé ou a cavalo, com crianças pequenas. Seu primeiro marido morreu aos trinta anos. Hoje, é casada com Manoel Pereira de Brito, com quem teve Sérgio. Os dois, entre dificuldades estruturais e financeiras, permitiram que seu filho tivesse uma formação escolar.

 

Valdirene Madalena, 39, esposa de Nelson, é professora em uma escola da zona rural. Ela leciona para alunos do ensino básico e, recentemente, terminou sua pós-graduação. Formada em Matemática, ela alcançou um patamar de estudos muito diferente de sua sogra, que é analfabeta. Por conta disso, os moradores da região acreditam que o acesso à educação, por seus descendentes, é um grande privilégio.

 

“Hoje todos eles tem como estudar. Tem ônibus que pega na porta de casa, leva e busca. Eles deveriam dar mais valor [à educação]”, afirma Balbina. O veículo sai do Boqueirão e percorre cerca de 30 km até as escolas municipais e estaduais de ensino presentes em Paratinga. O município não contém instituições privadas de educação. Vestibulandos, por exemplo, precisam se deslocar para outras cidades.

 

Uma das netas de Balbina e filha de Gabriel, Aline Azevedo, 18, é vestibulanda e quer cursar Medicina. Para isso, ela mora em Goiânia com uma tia e, numa rotina rigorosa e integral de estudos, frequenta um cursinho, custeado por seus pais, para alcançar a tão sonhada vaga numa universidade federal. “Quero cursar na UFBA ou na UFG”, conta.

 

Com descendentes tomando seus rumos e direitos fundamentais sendo conquistados aos poucos, o orgulho dos moradores em viver naquele lugar aumenta. Eles se informam com notícias televisivas e não se agradam do que sabem acerca dos grandes centros urbanos. A única demanda que dizem necessitar, em curto prazo, é o alcance de rede para celular e, consequentemente, conexões de internet sem fio.

 

Mesmo com o distanciamento do poder público local e as dificuldades de quem mora longe do perímetro urbano, Balbina tem mais a se agradar do que entristecer. “Só me incomodam as motos e carros, que fazem grande barulho”. Tranquilos e estabelecidos por cerca de um século no campo, a certeza atual é de que, no pouco ou no muito, são felizes.

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